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I CHING: O LIVRO MAIS ANTIGO DA HUMANIDADE

Com origem no território correspondente à atual China, o I Ching (conhecido como o livro das mutações) é reconhecido como uma das mais importantes obras da literatura da humanidade. As evidências históricas e arqueológicas permitem enquadrar a obra num período anterior à dinastia Chou (1046 a 256 a.C.). Estamos, portanto, perante um documento com mais de 3000 anos, cujo impacto no sistema de pensamento, o converteu na base filosófica do Confucionismo e do Taoismo.


Os fundamentos e primeiros desenvolvimentos que deram origem ao I Ching são atribuídos a Fu Xi (Fu Hsi), que terá vivido em torno do ano 2900 a.C.. As referências escritas descrevem Fu Xi como um dos primeiros três imperadores míticos, tendo sido antecessor de Huang Ti (ou Huangdi, conhecido como o Imperador Amarelo, tendo este reinado entre o ano de 2697 a.C. e 2597 a.C.). O reinado de Fu Xi situou-se entre o ano de 2852 a.C. a 2737 a.C., afirmando-se que este havia reinado por 115 anos e vivido 197 anos.


Ainda que envolto em forte misticismo, a história retrata que a Fu Xi se deve, para além de outros feitos, como sejam aspetos práticos relacionados com a arte da pesca, domesticação de animais, desenvolvimento da música e da base de caracteres chineses, a definição dos bigramas e dos 8 trigramas (gua) iniciais, dos quais derivariam os 64 hexagramas que compõem o sistema do I Ching, assim como lhe é ainda atribuído a utilização de ramos de aquileia (achillea millefolium), enquanto ferramenta de consulta do oráculo.


Nesta época, a consulta ao I Ching não estava associada a qualquer texto que orientasse o intérprete do oráculo, sendo que, a leitura, residia na capacidade de interpretação e conhecimentos de quem o consultava.


Seria pela mão do Rei Wen (1152-1056 a.C.), fundador da dinastia de Chou (1046 a 256 a.C.) e reinante entre 1099-1050 a.C., que seriam desenvolvidos os 64 hexagramas e os textos que determinavam o seu significado e terminologia. A lenda suportada por referências diz-nos que, no final da dinastia Shang (1558-1046 a.C.), o clima de insatisfação e tirania sentido era tamanho que um homem se levantou com o tirano governante. Este homem viria a ser o Rei Wen. Por este motivo, o mesmo foi exilado, tendo sido nesse período que se dedicaria à criação da obra que poria por escrito, pela primeira vez, os fundamentos do I Ching e a explicação dos hexagramas. O Duque de Chou (séc. XI), filho do Rei Wen e fundador da dinastia de Chou, seria responsável pela continuação do trabalho do Rei Wen, incluindo comentários ao texto então existente e acrescentando textos explicativos da função de cada linha dos 64 hexagramas.


Séculos mais tarde, e ainda que os registos sejam parcialmente inconclusivos, para além dos comentários do Rei Wen e Duque de Chou, discípulos de Confúcio (551-479 a.C.) ou o próprio filósofo, incluiriam os seus comentários, complementando textualmente a já extensa obra. Tais apêndices são conhecidos enquanto “As Dez Asas”.

Seria a junção dos comentários agora introduzidos pela escola de Confúcio, aos textos antigos e estruturantes produzidos pelo Rei Wen e pelo Duque de Chou que daria origem à obra I Ching, o livro das mutações, nos termos em que hoje é conhecida.


Após esta data (em torno do séc. V a.C.), o I Ching permaneceria vivo, não apenas enquanto oráculo de adivinhação mas também enquanto texto filosófico de referência (recorde-se que ele integra a categoria dos textos “Clássicos” chineses). A fonte de conhecimento, nele traduzida, serviria de inspiração, igualmente, ao filósofo Lao Tzu (Lao Zi) (séc. V-IV a.C.) e ao filósofo Zhuang Zhou (370-287 a.C.), sendo este primeiro autor da obra Tao Te Ching (o livro do caminho e da virtude), documento que, juntamente com o I Ching, inspiraram o aparecimento do Taoismo. Curiosamente, os valores evidenciados no Taoismo, como sejam a devoção, o amor fraterno, a compaixão, a sinceridade, a concórdia e a simplicidade, espelham em absoluto os 64 hexagramas.


A chegada da obra ao ocidente foi resultado da tradução de James Legge (1815-1897), um eminente académico e professor da Universidade de Oxford, responsável pela primeira tradução do I Ching, cuja publicação inicial data de 1854/55, tendo a obra sido republicada novamente em 1882, integrada na série Sacred Books of The East.


No passado mais recente, foi o psiquiatra, psicoterapeuta e fundador da psicologia analítica, Carl Gustav Jung (1875-1961), que centrou a sua atenção no estudo da psique humana, a sua natureza simbólica e a relação existente com o I Ching (entre outros sistemas místicos de adivinhação). Para Jung, o I Ching possibilitava colocar o consulente em estreita relação com os arquétipos de sabedoria (uma forma de imagem enraizada no inconsciente coletivo da humanidade e dos indivíduos e que se reflete nos mais diversos domínios da vida), sendo que, por sua vez, essa relação era estabelecida de acordo com o princípio da sincronicidade (estabelecimento de relações por via de significado, isento de relação causal), defendido por Jung.


Citando o prefácio da obra de Jung (1949*) “O I Ching não se apresenta com provas e resultados, não se vangloria de si, nem é de fácil abordagem. Como uma parte da natureza, espera até ser descoberto. (…) Que o deixem seguir para o mundo em benefício daqueles que sejam capazes de discernir seu significado.”


*A citação apresentada resulta da tradução do prefácio de Jung, datado de 1949, da edição Bollingen Series XIX, Princeton University Press, 1972, disponível em Wilhelm, R. (2006). I Ching: O livro das mutações. Brasil: Pensamento, p. 26. Do enquadramento filosófico e da ciência.


O I Ching baseia-se no princípio de oposição de conceitos contrários, comumente conhecidos como yin e yang. O elemento yin é representado enquanto força feminina, a escuridão, o lado negativo e o elemento passivo; por sua vez, o elemento yang é caracterizado enquanto força masculina, a luz, o lado positivo e o elemento ativo.


Este princípio de oposição de elementos contrários que, ainda assim, se complementam sendo não irredutíveis ou subordináveis entre si, conduz-nos a uma noção aproximada, ainda que não exata nos mesmos moldes, do conceito de dualismo.

O conceito de dualismo é expresso em toda a história de humanidade: Platão (428/427-348/347 a.C.), Sócrates (469-399 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), defendem que o espírito e/ou a alma não podem ser relacionados ao corpo, uma vez que os mesmos não possuem uma identidade física; Thomas Hyde (1636-1703), baseando o seu estudo em Zoroastro, Pierre Bayle (1647-1706) e Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), refletem nos seus trabalhos o eterno princípio do dualismo representado pela relação entre o bem e o mal; René Descartes (1596-1650) que em 1641 publicaria Meditações Metafísicas, mais uma vez, afirma que a dimensão corpórea e a dimensão espiritual eram compostas de diferentes substâncias.


Ora, este princípio do dualismo ainda que aparente ser próximo dos conceitos de yin e yang, em certa medida, apresenta uma diferença significativa, uma vez que os princípios subjacentes à divisão das partes integram um todo, ou seja, como é explorado na filosofia taoista, nenhum dos elementos é mais importante do que o outro, nem um dos elementos pode existir sem o outro, uma vez que ambos fazem parte de um todo comum. Em todo o caso, o sistema delimita duas existências, à semelhança do conceito dualista: uma relacionada com a força vital abstrata (chi/qi) e outra relacionada com a existência concreta (xingzhi). Esta última representa a manifestação do abstrato como dualidade.


Assim, o princípio mais próximo que se consegue estabelecer da dualidade, associado ao I Ching, diz-nos que o ilimitado (wuji) produz o delimitado e isto é a existência absoluta (taiji). O absoluto (taiji), por sua vez, dá origem aos dois elementos yin e yang, sendo que, estes, produzem 4 fenómenos: o tai yin (ou grande yin, cujo significado simbólico remete para a lua), o shao yin (ou menor yin), o tai yang (ou grande yang, cujo significado remete para o sol) e o shao yang (ou menor yang). Estes 4 fenómenos interagem formando os 8 trigramas (baguá) que, quando desmultiplicados, permitem obter os 64 hexagramas (liushisigua) que sustentam o I Ching.


A ideia subjacente ao balanço dinâmico de opostos e de que a relação entre eles constitui um sistema de evolução de acontecimentos, como um processo e uma mutação, sustenta e fundamenta o conceito central do I Ching enquanto sistema de mudança. O I Ching é a manifestação e alegoria desta mutação; da permanente dança cósmica entre o equilibro de opostos que representa o universo, o Homem e a sua vida enquanto ciclo. Assim, o universo é uma massa de energia em constante transformação e mutação, sendo este representado pela estrutura cíclica do I Ching e dos hexagramas que o compõem.


O I Ching regista ainda fantásticos paralelismos com a ciência. O matemático, cientista e filósofo Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), fascinado pela obra, estabeleceria com sucesso uma relação entre o I Ching e o sistema binário que ele mesmo criara. Tendo atribuído a 1 a representação de linha e a 0 a representação de linha interrompida, Leibniz apercebeu-se de que o conjunto de 6 linhas interrompidas, ou seja, 6 zeros, formariam o hexagrama Kun (terra), sendo que, em linguagem binária 000000 = zero e que, por exemplo, o conjunto de 6 linhas, ou seja 6 uns, formariam o hexagrama Chien (céu), sendo que, em linguagem binária 111111 = 63. Seria encontrado, deste modo, o princípio daquela que viria a ser a base da computação, séculos mais tarde. O I Ching não ficaria apenas pela sua relação com o sistema binário.

Era genericamente consensual, até ao início do séc. XIX, ter-se uma representação da matéria enquanto algo desprovido de transformação. A transformação ocorrida resultava do fenómeno Deus e de um sistema de imposição exterior à própria existência do universo. Seria pela mão de cientistas como Albert Einstein (1879-1955), que se debruçaria sobre a mudança de energia em matéria e matéria em energia, de James Clerk Maxwell (1831-1879), cujo trabalho evidenciou o estudo das ondas eletromagnéticas e de como um campo elétrico é associado a um campo magnético, e de Niels Bohr (1885-1962), lançando as bases e raiz da física quântica, particularmente, fundamentando o principio da complementaridade, que resultariam evidências científicas de que as partículas que constituem o universo estão em contínua transformação, logo, em plena mutação e que o mundo subatómico se rege pela movimentação dos opostos.


Refira-se outra curiosidade (?), seria lançado em 1973 a obra The I Ching and the Genetic Code, pela mão de Martin Schonberger. O livro retrata a relação entre os 64 hexagramas e as 64 combinações possíveis das proteínas do código genético humano. Por fim, e mais uma vez provendo uma relação de curiosidade, é possível recordar um princípio físico e químico, cuja expressão que o celebrizou, faz enorme sentido quando aplicada ao I Ching. Tal princípio é conhecido por lei da conservação de massas ou lei de Lavoisier (1774) e este afirma que: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

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